terça-feira, 15 de abril de 2008

Memória de Santarém - por Lúcio Flávio Pinto


Contra o grande projeto

Romualdo Santos, que detinha algum tipo de autoridade em Curral Grande, em Monte Alegre, publicou em O Jornal de Santarém, edição de 1º de março de 1952, um "ineditorial" (matéria paga) que expressa a reação dos moradores locais a um projeto concebido pelo engenheiro agrônomo Felisberto Camargo.
O diretor do Instituto Agronômico do Norte (a atual Embrapa), uma das estruturas de governo criadas no pós-guerra, queria drenar as águas do Amazonas para o Lago Grande de Monte Alegre, através de canais artificiais, e dessa maneira fazer com que os sedimentos transportados em suspensão pelo rio fossem se depositando nesse local, criando um solo de excepcional fertilidade. Seria a área mais rica do mundo, se o projeto desse certo. Mas não deu. Os canais foram destruídos pela força do rio.
Felisberto Camargo também fixou nessa área rebanhos de búfalos importados do Oriente, graças ao acesso que tinha ao então presidente Getúlio Vargas. Era uma das mais polêmicas personalidades públicas dessa época na Amazônia.
O conflito criado com a população nativa revela também uma das constantes no processo de ocupação da região a partir de fora: a sua embocadura autoritária, pela imposição de decisões tomadas a partir de cima, com fundamento em razões técnicas, mas sem incorporar o conhecimento e as aspirações da própria Amazônia. Insensível à história local.
Diz a mensagem de Romualdo, com sua linguagem rústica (cujos numerosos erros de português procurei corrigir, sem modificar a espontaneidade da expressão):
"Partido de união brasileiro. Usando das suas atribuições legais convoca os srs. moradores do Curral Grande, que temos lutado com grandes dificuldades para defender os nossos direitos, mas ainda não encontramos, mas fazemos veemente apelo sobre os serviços do Instituto Agronômico do Norte, que nos tem prejudicado bastante, sobretudo com a criação de búfalos, porque contêm muito micróbio de impaludismo, sendo a maior maravilha que o sr. Camargo apresentou nesta zona, mas, como disse N. S. Jesus Cristo, que próximo ao fim do mundo todos os sinais tinham de aparecer e o primeiro é este, que o anti-Cristo que está em nossa frente, que é para fazer o povo se perder. O sr. Camargo, quando ele dorme e sonha, aí saem os planos, que é para fazer alguma coisa, mas nada sai que se aproveite. Tenho que dizer que se as águas não vazarem, o prejuízo será grande, porque "seu" Camargo mandou que todos retirassem seus gados, mas trouxe grandes rebanhos de búfalos para mais nos prejudicar. Precisamos viver e trabalhar pelo engrandecimento da pátria. Viver escravizados, já se foi o tempo. O sr. Camargo quer meter os pássaros na gaiola para depois ele dominar, mas está difícil ele secar o lago de Monte Alegre, que foi feito pela natureza, embora ele diga que a natureza errou, mas errado está ele querer desfazer das de Deus, que é todo poderoso, e quando Ele ver que que querem ser mais do que ele dará o traço. Eu tenho a dizer que enquanto eu for autoridade nesta região, estarei pronto para executar as queixas que me forem apresentadas, conforme a lei determinar. O sr. Camargo diz que não temos entendimento comigo porque eu sou analfabeto. Eu não estudei como ele, só estudei o ABC. O sr. Camargo já foi avisado por uma carta que serviços de drenação [drenagem] e serviços nas matas e cercados nos cobertos, ninguém é de acordo porque é muito prejudicial, em tudo e por tudo é preferível não continuar para amanhã ou depois não haver choques desagradáveis. O sr. Camargo julga o Curral Grande ser dele, mas é proprietário igualmente aos outros".

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