terça-feira, 12 de agosto de 2008

Juruti: o sentido do desencontro

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós

Henry Ford nunca colocou os pés nos dois lotes, com 1,2 milhão de hectares, que recebeu do governo do Estado no vale do rio Tapajós, em 1927, para plantar seringueiras e produzir borracha. A Ford, a mais poderosa empresa internacional da época, permaneceu na área durante 18 anos e acabou se retirando, em 1945, sem ter conseguido viabilizar a plantação, nem a visita do seu proprietário.
Outro americano, Daniel Ludwig, esteve várias vezes no vale do Jari, entre 1967 e 1982, para ver seu latifúndio, que imaginava ter 3,6 milhões de hectares (não tinha), onde plantou árvores e produziu caulim e celulose. Mas nunca conversou com os moradores locais. Pelo contrário: comprou suas posses e afastou-os das terras, nas quais se estabeleceram muito antes para coletar castanha e produzir borracha.
A Alcoa, maior produtora mundial de alumínio, no mercado há mais de um século, não é mais uma empresa de um dono só, como a Ford foi sob o comando do seu fundador ou a Jari de Ludwig. É uma corporação societária que, por buscar parte do seu capital na bolsa de valores, através da venda de ações, está sujeita a mudar de comando por conta do mesmo mecanismo, ainda que seus controladores queiram continuar no negócio (ver Jornal Pessoal 422).
A alta cúpula da Alcoa já esteve em Juruti, onde implanta uma nova mina de bauxita, três vezes, com escala em Belém. A mais recente excursão foi no final do mês passado. Vieram o cidadão brasileiro que estava deixando a presidência executiva, Alain Belda (que faz carreira na empresa há quase quatro décadas), o seu substituto, o americano Klaus Kleinfeld, e o presidente da empresa para a América Latina e o Caribe, Franklin Feder.
Feder saiu de São Paulo, mas Belda (agora na presidência do conselho de administração) e Kleinfeld se deslocaram de Nova York. Eles se atrasaram duas horas para o encontro agendado pela própria Alcoa com os moradores de Juruti Velho, que resistem ao empreendimento. O atraso foi considerado um desrespeito às 40 comunidades da região, vizinhas da mina, da ferrovia e do porto, que a multinacional americana está construindo. Os moradores esperaram apenas a chegada da comitiva e anunciaram o cancelamento do encontro. Não voltaram atrás, apesar dos pedidos de desculpas apresentados por Feder e sua insistência para que a reunião fosse mantida.
Os comunitários alegaram que os dirigentes da Alcoa deram prioridade à visita à mina e à conversa com empreiteiros e fornecedores, ao invés de cumprir o horário marcado com os habitantes de Juruti Velho. Passaram pelo local no caminho da mina, sem considerar os prejuízos que causariam aos convidados, que precisariam retornar à noite para suas casas, numa navegação difícil pelo Amazonas. Se a conversa fosse mantida, o tempo disponível seria curto demais para possibilitar questionamentos. Os moradores, referendados pelos representantes do Ministério Público, que estavam no local, pareciam interpretar a ação da Alcoa como cerceamento e manipulação. Mais um desrespeito na conta das relações da corporação com os tradicionais habitantes da região.
É possível que eles tenham razão e, mesmo sem essa intenção deliberada, o atraso da Alcoa represente uma desconsideração da poderosa multinacional pela própria região na qual vai ampliar sua presença (é co-proprietária de uma fábrica de alumina e alumínio em São Luís e sócia na mineração de bauxita do Trombetas), agora sozinha no controle do empreendimento. Tomar literalmente essa interpretação como verdadeira, porém, seria atribuir um atestado de burrice e incompetência a uma empresa internacional que, no caso do projeto Juruti, vem se empenhando em mudar sua imagem. É flagrante a contradição entre a decisão de deslocar a cúpula da empresa para o sítio da mina, de uma forma raramente vista nos sertões amazônicos (ou sem antecedente mesmo), e o grosseiro desprezo para com os convidados, já tão predispostos contra o projeto.
O erro foi cometido e é indisfarçável. Deixa escapar um vício de procedimento dessas poderosas corporações econômicas, centradas em seu poder, metropolitanas na mentalidade, que a cosmética relações públicas pode apenas atenuar. Ainda assim, os habitantes de Juruti Velho e seus assessores não deviam simplesmente atirar ao lixo, como falsa e imprestável, a iniciativa da alta diretoria da Alcoa de ir à área e se expor aos riscos de um debate. Esse gesto tem seu valor e não deixa de ser um sinal de mudança.
Qualquer pessoa que evita seus inimigos e adversários apenas porque eles são seus antagonistas se privará de um aprendizado valioso e estará ainda mais exposta ao enrijecimento mental e ao empobrecimento intelectual. O contato com o oposto (e mesmo com o indesejado) é mais instrutivo do que parece. Pode até reforçar as idéias que já se tinha antes, mas certamente elas ficarão mais afiadas, com melhor fundamentação, mais próximas do melhor possível e mais distantes do falsamente melhor. Quem não precisa de debate, polêmica e controvérsia pode até continuar carregado de certezas, mas elas serão tão valiosas quanto uma pepita de pirita, o ouro dos tolos. Uma mente rígida cria uma inteligência granítica, refratária à realidade – e, em especial, ao novo, o motor da história.
As riquezas amazônicas que já não sendo exploradas (e a uma velocidade espantosa) estão guardadas em algum lugar, à espera de revelação e uso. Não as protegeremos com muralhas da China nem sentando sobre elas. Se agirmos assim, o que é nosso solo frágil (mas ricamente recoberto de vegetação, em torno da qual gravita diversidade de vida sem igual no planeta) e nosso subsolo portentoso poderá virar miragem ou se tornar nosso túmulo. Mesmo que seja para protegê-lo, precisamos olhar nos olhos quem supomos ameaçar nosso patrimônio para verificar, com nossa inteligência, bom senso e instintos, se é, de fato, nosso inimigo, que tipo de inimigo é e se podemos obrigá-lo a incorporar nosso mundo e nossos direitos, sem desvirtuá-los ou destruí-los.
Como na lenda indígena, a noite pulou para fora do caroço de tucumã quando alguém o abriu. A tarefa, agora, é conhecê-la e dominá-la. Para que nos permita escrever uma história melhor do que a que está em curso. Se não, será apenas noite, sem qualquer simbolismo iluminador.

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