segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O trauma amazônico:as estradas de rodagem

Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal

O acontecimento mais traumático na história da Amazônia, depois (e por causa) da chegada dos europeus, foram as estradas de rodagem. A presença do colonizador branco na região tem meio milênio. A dos habitantes primitivos, chamados pelos europeus (impropriamente, como de regra) de índios, mais de 10 milênios. As estradas são um fato de apenas meio século. Mas demarcaram o tempo amazônico, que pode ser descrito como antes e depois delas. Depois, o dilúvio.

Sua marca mais profunda é a de não admitir retorno. A história que existiu antes delas pôde ser refeita. A atual é definitiva, irremediável. A Amazônia até já teve presença mais visível no mundo, quando era a única fornecedora de borracha natural para a nascente indústria. Essa hegemonia desmoronou quando, na Ásia, outros colonizadores europeus conseguiram a goma elástica em muito maior quantidade e a preço incomparavelmente menor.

A floresta nativa voltou então a ocupar os caminhos abertos pelos seringueiros, que se espalharam pela região ou voltaram às suas terras de origem, no Nordeste, é claro.

Mesmo quando os antigos seringais abandonados foram reativados para fornecerem de novo borracha, agora para os países Aliados, que combatiam as potências do Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial, a paisagem antiga foi recomposta, como se o episódio não tivesse existido.

Tanto que a área alterada pelo homem na Amazônia não ia além de meio por cento da superfície da região quando, nos anos 50 do século passado, duas estradas partiram da nova capital federal no rumo noroeste, até o Acre, e norte, para Belém do Pará. Pela primeira vez o Brasil se unia por terra a uma parte do país até então considerado – e tratado – como nação independente, a antiga província do Grão Pará e Rio Negro. Parte que representava quase dois terços do todo, mas era como se não existisse.

Juscelino Kubitscheck, o Washington Luís da República Nova (“governar é abrir estradas”, proclamou o presidente paulista, o último antes da revolução de 1930), queria criar em cinco anos um Brasil para meio século. Na memória que escreveu sobre seu qüinqüênio, disse – sem qualquer travo de arrependimento – que o objetivo de suas rodovias era abrir um sulco na floresta para que o novo bandeirante fosse além, transformando o cenário.

Ainda se vivia sob a mística da “corrida para Oeste”, para as terras ignotas e livres. Nelas, o habitante do Brasil mais velho poderia, finalmente, realizar seus sonhos de se tornar um proprietário rural e se integrar ao espaço econômico nacional. Bastava chegar ao novo mundo para sofrer a súbita mutação, embora à custa de muitos trabalhos e sacrifícios na execução da tarefa de pôr a mata selvagem abaixo e convertê-la em ecúmeno, o espaço do homem, o mais feroz dos animais que povoaram a Terra.

Apesar das projeções grandiosas de JK, o capítulo amazônico da sua utopia desenvolvimentista ficou sendo um detalhe. Ainda admitia a conciliação entre o passado e o presente. A população cresceu bastante, muitas áreas pioneiras foram desbravadas, a fronteira se expandiu. O personagem principal, porém, continuava a ser a natureza. A façanha do homem era uma aventura quase individual, incapaz de dobrar a portentosa conjunção dos poderosos elementos.

Movidos por uma geopolítica mais agressiva e um compromisso mais decidido com a empresa privada, os militares vieram a seguir para multiplicar as dimensões da intervenção promovida pelos presidentes populistas anteriores a 1964. Agora havia uma razão categórica, a impor o ritmo acelerado das obras e a sua aceitação pela sociedade: a doutrina de segurança nacional.

Novos eixos rodoviários surgiram, maiores e mais agressivos do que a Belém-Brasília e a Brasília-Acre, rasgando o interior, até as terras altas amazônicas, até então inacessíveis. A propaganda do governo dos generais exaltava o caráter épico da Transamazônica, destacando que os americanos, na liderança de outra grande aventura humana, a conquista da Lua, de lá de cima só podiam perceber duas obras construídas na Terra: a muralha da China e a Transamazônica.

Podia-se pedir vênia aos guardiões da segurança nacional para fazer uma comparação pertinente entre as duas obras, à revelia da aceitação por esses senhores da analogia – só que invertida. A imensa muralha da China fora erguida na presunção de que manteria do lado de fora os bárbaros, numa antecipação, à oriental, da triste Linha Maginot dos franceses. Já a Transamazônica, sem querer, se transformaria no caminho dos bárbaros.

Não de bárbaros estrangeiros nem auto-assumidos. Bárbaros por inadvertência, despreparo, circunstância. Tanto o João da Silva quanto a sociedade anônima, atraídos para a região por promessas idílicas ou recursos bem sonantes, eram constrangidos a destruir e transformar, cada qual na sua devida escala, pelo governo ou por sua própria cultura, a cultura de um Brasil estranho à Amazônia, dela completamente desligado por três séculos de isolamento físico.

Antes de tudo, era preciso colocar a floresta abaixo. O esforço do pioneiro só seria reconhecido se ele conferisse valor à terra que ocupava. O instrumento de avaliação era o VTN (Valor da Terra Nua), utilizado pelos organismos oficiais para selar com a estampilha legal a pretensão de posse do ocupante. Quanto mais desnuda da sua cobertura original, mais valia a terra, agora inserida num novo contexto. O desmatamento era a tradução alucinada da benfeitoria, atestando o trabalho realizado pelo ocupante.

Não mais na moldura da comunidade isolada ou do mercado próximo. Na ponta da linha estava a necessidade de atender a um número muito maior de consumidores, com uma demanda crescente. O alvo dessa ofensiva, da qual resultou o maior desmatamento já praticado em toda a história da humanidade, no curto período de 50 anos, era o mercado ainda mais distante, de além-mar.

Não por acaso, logo a fronteira imensa se fechava por dentro. A latifundiarização no papel, muitas vezes produto de simples e audaciosa grilagem, era arrematada pelo cano da pistola ou do canhão. O colono, que cruzara os espaços para se tornar proprietário, virou posseiro e, agora, assentado, cliente do agrarismo de compadrio dos companheiros. O que era do homem, o bicho comeu.

A floresta era derrubada, os animais mortos, o ambiente desfigurado, as comunidades nativas desorganizadas, a cultura local corroída para que desse anacrônico Éden resultasse um volume crescente de divisas, de moeda forte, o dólar. Seria produzido o que o comprador quisesse, como lhe fosse mais lucrativo. A predestinação geopolítica do Brasil Grande assim o exigia.

Como suprir a falta de poupança real no país para alimentar o crescimento econômico acelerado se o consumo se sustenta no crédito e, este, de preferência, no tesouro nacional? Agregando ao processo produtivo do Brasil mais antigo as riquezas da sua vastíssima fronteira, caracterizada pela abundância de recursos naturais. Recursos dos quais o mundo se tornava carente por não possuí-los ou não se dispor a investir o necessário para tê-los à disposição de forma sustentável.

Do momento em que os grandes eixos rodoviários foram abertos ao tráfego até hoje, as exportações da Amazônia cresceram mais de 100 vezes. Como se tivessem dobrado a cada semestre, concentradas quase integralmente em dois dos nove Estado, o Pará e o Mato Grosso (já agora mais para Mato Fino). Algumas dessas riquezas, a maior delas que nem nativa é, como a soja, podem ser recicladas. Outras, como os minérios, os de maior peso no comércio internacional da região, não dão uma segunda safra. Vão e nunca mais voltam.

O saque nesse almoxarifado, que já foi batizado (por Humboldt) como “o celeiro do mundo”, tem o tamanho de 700 mil quilômetros quadrados, três vezes o tamanho de São Paulo. Um dos Estados, Rondônia, pugna pela sua exclusão da Amazônia porque o desmatamento já ultrapassou o limite legal do Código Florestal. Quer ser incorporado ao Centro-Oeste, como também, de forma menos explícita, Mato Grosso. De fato, embora ainda não de direito, não são mais Amazônia.

Por ironia, um dos maiores heróis do Brasil, o marechal Cândido Mariano Rondon, descendente dos sábios habitantes primitivos da Amazônia, impropriamente chamados de índios pelo vitorioso colonizador europeu, imprimiu sua marca nesses dois Estados com uma epopéia: a extensão das linhas de comunicação que colocaram a Amazônia em contato mental com o Brasil. Sem destruir a fronteira nem seu habitante. Rondon estava disposto a morrer, se fosse preciso, mas matar, nunca. Seu lema, o pó das estradas encobriu.

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