quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Condição colonial

Lúcio Flávio Pinto:

Para escapar à condição colonial que lhe impõem, o habitante da Amazônia tem que se esforçar ao máximo para aproximar dois tempos: o da consciência e o da realidade. Como as decisões fundamentais, aquelas que mudam para valer a trajetória dos fatos, são tomadas de fora para dentro, com base em interesses complexos e profundos, ter ciência imediata dos acontecimentos é indispensável. Só assim o povo local pode ter participação ativa no enredo.

Raros povos coloniais conquistaram esse poder. Mas só ele não é suficiente: é necessário se antecipar aos fatos para tenha um efeito favorável a nós. Isso é quase impossível aqui, como foi impossível em muitos países da África e da Ásia sujeitos ao colonizador, ao bwana, mais “esperto”, mais poderoso.

Temos, hoje, uma arma que faltou às nações coloniais do passado: a possibilidade de acesso às informações mais protegidas, mais escondidas e sonegadas, poderosas armas de preservação do poder estabelecido. Para obtê-las, porém, é preciso travar uma guerra pesada. Esse combate exige atenção permanente, busca incessante, capacidade de captar, analisar e interpretar os dados obtidos. Além de condição de transformá-los em ferramentas para a ação por parte dos que, nesses grandes acontecimentos, são tomados como espectadores ou paisagem.

Este jornal [Jornal Pessoal] existe porque persegue com a tenacidade possível essa meta: preencher a agenda dos seus leitores com as informações que lhes permitam ser contemporâneos da própria história. É dos efeitos mais perversos – e também mais eficazes – do colonialismo fazer o colonizado pensar pela cabeça do colonizador, fazendo-lhe a vontade e colocando-o à mercê dos seus jogos de interesses. Sem as informações adequadas, o colonizado é como o burro diante da catedral. Está no centro da história, mas não tem a sua dimensão. Pensa que tudo é corriqueiro e rotineiro, como se a roda dos fatos o dispensasse para se mover. Segue por inércia.

Não é mais assim, mas pode continuar a ser exatamente assim se os colonizados se submeterem a essa lógica destruidora, renunciando à faculdade que os tempos atuais lhes permitem de ser realmente contemporâneos da história em mutação na Amazônia. Pode ser que não se consiga mudar o traçado da realidade ao máximo necessário, mas está ao nosso alcance mudá-lo substancialmente. Ter as informações é indispensável para adquirir essa condição de consciência.

Em alguns momentos este jornal consegue estar atualizado ao que de mais recente acontece na Amazônia, quando os fatos ainda não estão consumados, Inês está viva e o leite não foi derramado. Se outro mérito não tivesse, o JP teria ao menos um: procurar uma posição de vanguarda, lidando com fatos ainda em progresso ou mesmo embrionários. É um jogo arriscado, que pode destruir reputações.

Às vezes percebe-se o novo como se fosse a luz de um relâmpago, intensa e rápida, um clarão de lucidez que pode se desfazer de modo tão imediato quanto surgiu. Nem sempre se está habilitado a delinear o perfil daquele raio que cortou o céu. Erros já foram cometidos por este jornal no esforço de registrar ou entender fatos que ainda não foram mediados pelo saber acumulado localmente e sobre os quais ninguém se pronunciou na arena pública (e há cada vez menos pessoas dispostas a se pronunciar). Mas, como diz o povo, quem não arrisca não petisca. Quando não há saída, deve-se insistir no ensaio e erro.

O jornalista americano Larry Rohter, durante vários anos correspondente do New York Times no Brasil, registrou no seu livro sobre a saga brasileira (Deu no New York Times) que este jornal foi o primeiro a detectar a importância da penetração chinesa na Amazônia, em 2001. Nove anos depois, na edição anterior, aqui se mostrou a extensão desse avanço. Imaginava-se que a manchete, destacando Carajás como sendo uma possessão mineral da China, pudesse atrair a atenção da opinião pública e provocar repercussão e reação. Para desânimo nosso, seguiu-se o silêncio, característico da impotência criativa dos colonizados.

Enquanto dormimos no ponto, a China (como o legendário Jorge Age na Belém de antes) age. Ela montou uma estratégia que lhe garante o fluxo de matérias primas de que precisa e das quais não tem auto-suficiência, a preço favorável. Quando o suprimento encontra obstáculo e não consegue removê-lo, instala-se no ponto de origem. Pode ser como simplex extratora de recursos naturais, mas também como beneficiadora. E quando é sua a commodity, manobra para elevar-lhe o preço ou obriga o importador a transferir seu centro de industrialização para a própria China, como está ocorrendo no momento com as estratégicas terras raras (17 metais únicos, de enorme valor no mercado e vitais para certas indústrias, como a bélica e de informática). A China possui 97% das reservas e absorve 60% da produção mundial. Carajás não chega a tanto. Mas é quase tanto. Talvez, em função de seu volume, mais.

Apesar da indiferença, volta-se a insistir no tema. Ainda há capítulos a escrever antes do desfecho da história. Tentemos aproveitar.