terça-feira, 22 de novembro de 2011

O direito de Tito e a bolsa-ditadura


Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós


O melhor campus universitário do Brasil era o da Universidade de São Paulo. Mesmo nele, porém, o curso de ciências sociais ficava alojado em barracões, que contrastavam com construções arrojadas, como a do curso de arquitetura e mesmo a de história. Eram barracões bem melhores do que os das ciências sociais de Belém, mas, de qualquer forma, para discriminar mesmo, estigmatizar, isolar.


Foi lá que tive a última conversa com frei Tito de Alencar. Uma conversa longa e proveitosa. Tito tinha a fragilidade demarcada no corpo magro, baixo. Mas se fazia ouvir com prazer. Seu sotaque nordestino do Ceará era manso e doce. Conversávamos sobre coisas espirituais e questões filosóficas ou sociológicas, como naquele dia. Veio o escurecer, que era lúgubre naquele descampado, e nos despedimos.

Soube que era ligado à luta armada e estava associado à ALN de Carlos Marighela quando ele foi preso. Jamais pude supor que fizera essa opção. Olhando-o, via a mim mesmo: não estava preparado para esse desafio. Mas não era só uma questão de despreparo físico: eu não acreditava no que a esquerda mais radical fazia. Tirante tanta discussão de fundo, havia uma evidência primária: o povo não estava disposto a endossar essa forma de reação a um governo que, mesmo despótico ao extremo, oferecia compensações materiais, especialmente à classe média. O radicalismo de oposição engendraria mais radicalismo oficial.


O Tito com quem eu conversava nos barracões coloridos não sugeria preparo para a barra pesadíssima da repressão, que podia esmagar quem pegasse em armas contra o governo militar. Essa certeza se materializou quando ele se suicidou, em Lyon, na França, em 1974. Tinha apenas 29 anos. Sobrevivera às torturas comandadas pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, o carrasco da repressão. Mas não às seqüelas da brutalidade. Atormentado, se enforcou às proximidades do convento dos dominicanos, onde se exilou, sem encontrar a paz em vida.


Frei Tito de Alencar volta ao noticiário com a aprovação de pensão especial que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara concedeu à sua família. Se o projeto passar pelo Senado, seus 10 irmãos dividirão 500 reais por mês. Dará 50 reais para cada um dos herdeiros.


É 40 vezes menos do que recebe o escritor Carlos Heitor Cony, que continua vivo e com boa saúde, renovada ainda mais pela pensão de mais de um milhão de reais. Valor ínfimo também se comparado aos R$ 4,5 mil que os cartunistas Ziraldo e Jaguar recebem, acima da média de R$ 3,7 mil dada a 13,5 mil anistiados, que perfazem um custo de quase U$ 3 bilhões aos cofres públicos.


O escárnio fez o Tribunal de Contas da União anunciar uma revisão dessa milionária bolsa-ditadura, a maior de todas do repertório de favorecimentos que denigrem o passado e desmoralizam seus personagens. Numa questão que tanta controvérsia pode provocar, o critério justo tinha tudo para ser simples: receberia ressarcimento material aquele que promovesse a devida ação judicial de indenização, garantindo-se a imprescritibilidade para os crimes de natureza política. Mas demais situações, ficaria preservada a contagem do tempo de serviço aos punidos por atos do governo de exceção.


Frei Tito de Alencar teria direito a essa indenização. Clarice, a viúva de Wladimir Herzog, mais ainda. No entanto, sua ação foi apenas para que a justiça responsabilizasse a União pelo assassinato do marido, sem qualquer ressarcimento. Cony, Jaguar, Ziraldo et caterva, não. Ao menos num país sério, feito por gente séria, sobretudo a que se declara defensora dos direitos humanos e da justiça social.

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