domingo, 25 de setembro de 2011

A guerrilha dos coronéis do Pará


Lúcio Flávio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós

Uma boa biblioteca dá ao seu dono um grande prazer: ao revirar os livros ele se surpreende, se anima, descobre, revive. Tanto maior o prazer se ele surge de surpresa, de um livro que se possuía sem, todavia, havê-lo lido. E a leitura se revela proveitosa, útil ao leitor e a quem tiver acesso ao que ele leu. Com o propósito de partilhar os resultados da garimpagem pelos meus livros é que crio mais esta seção. Como as demais, sua continuidade dependerá das circunstâncias, mais do que da minha vontade. Espero que o distinto leitor aprecie o que irá ler.

Quem imaginaria que os novos centuriões do poder, depois de sepultarem o que restava do “baratismo” no Pará, através do golpe militar de 1964, logo entrariam em conflito? Ninguém. Mas a verdade é que, já em 1965, Jarbas Passarinho e Alacid Nunes começaram a se desavir. A imprensa nada registrou na época – nem durante os anos seguintes. Não surpreende: mesmo sem sofrer censura, que desabaria sobre alguns órgãos da grande imprensa nacional, sobretudo o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, num primeiro momento, os jornais locais faziam o que seu mestre mandava.

Hoje se sabe que Passarinho, a maior liderança do regime no Estado, por ter ficado com o cargo de governador, não gostara de ver seu candidato à sucessão, o então prefeito de Belém, Alacid Nunes, em acertos de bastidores com um empresário, Ocyr Proença, que representava a estrutura anterior, tão “carcomida”, na visão dos novos turcos, quanto os da República Velha aos olhos dos “tenentes” de 1930 (alguns dos quais ainda sobreviviam em 1964).

O engenheiro Ocyr Proença comprou O Liberal, jornal de campanha de Magalhães Barata, só para fazer a campanha de Alacid. Além de ter negócios com os pessedistas, Ocyr era ligado a Gilberto Mestrinho, a maior liderança do Amazonas, que já estava cassado. Mestrinho era petebista e “janguista”, além de passar por saqueador dos cofres públicos (Márcio Souza se inspirou nele para criar o personagem “boto tucuxi”). Quando cobrado por Passarinho, o candidato se justificou: era necessário para propagar seu nome e arcar com as despesas de alimentação dos eleitores, o dinheiro “do boi”.

Ao que parece, a manada era tão grande que exigiu fundos expressivos. Nesta e em outras ocasiões, incrementando as divergências entre os dois maiores líderes políticos do novo regime. Elas acabaram por ultrapassar os limites da confidencialidade e foram se tornando públicas, à medida que cada grupo disputava com o outro a hegemonia do poder e a partilha do butim público. Terminaram por se enfrentar abertamente na eleição de 1982, abrindo espaço para o surgimento de uma liderança que os haveria de superar e até absorver: o coronel civil Jader Barbalho.

Essa era a história que se conhecia. O general Sylvio Frota, porém, conta outra no seu livro Ideais Traídos, escrito em 1980, mas só publicado 26 anos depois (Jorge Zahar Editor, 2006, 662 páginas). Frota diz que a ouviu, quando era comandante da 1ª Região Militar, do general Jurandir Bizarria Mamede, então chefe do Departamento de Provisão Geral do Exército.

Mamede lhe contou que, em certa ocasião, “fora procurado pelo governador do estado do Pará, coronel R1 [da reserva] Jarbas Passarinho, de quem era amigo, que estava indignado com o comportamento do prefeito de Belém, coronel [tenente-coronel] Alacid Nunes, candidato a substituí-lo no Executivo estadual. Não obstante estar apoiando sua candidatura, pretendia romper com Alacid, porque discordava de seu procedimento, por ser condenável e anti-revolucionário. O móvel da questão estava na circunstância moralmente desabonadora de o candidato, para solucionar o angustiante problema das despe3sas com a alimentação dos eleitores convencionais, no dia da votação, ter aceitado do Chefe do Serviço Nacional de Informações – general Golbery do Couto e Silva – quantia em dinheiro, remetida em cheque bancário”.
Mamede, que foi comandante militar da Amazônia e da 8ª Região Militar, em Belém, quis saber como Passarinho tivera acesso à informação. O governador lhe respondeu que foi através do próprio Alacid, “rejubilando-se por já ter contornado todos os obstáculos, mostrara-lhe o cheque, tendo-lhe feito ele, no mesmo instante, acre censura”, relata Sylvio Frota.

Mamede lhe relatou então as dificuldades que enfrentou “para evitar o rompimento público dos dois homens, o que só conseguiu mostrando quão pernicioso seria para uma revolução, ainda no nascedouro, um escândalo desta espécie. No entanto, ao que se informara, os dois cortaram relações”.

O ministro do Exército na gestão do general Geisel (1975/79) registrou o episódio porque, em 1975, o já então senador Passarinho foi escolhido para ser o orador oficial no Dia da Artilharia, que fora sua arma como militar, mas tivera seu nome vetado pelo próprio presidente Geisel e fora obrigado a se “desconvidar”. O presidente achava que a escolha de Passarinho iria projetá-lo e contribuir para sua pretensão de ser o líder do governo, o que desagradava a Geisel (mas a que acabou se submetendo, depois do acerto na política estadual).

Nessa ocasião, Passarinho visitou Frota em seu gabinete e confirmou a história relatada pelo general Mamede, inclusive que “cortara relações” com Alacid, o que, ao menos de público, não aconteceu naquele momento, 10 anos antes. O senador da Arena, o partido do governo federal no sistema bipartidário imposto (junto com o MDB, da oposição consentida), teve também que explicar o reatamento das relações com Alacid, que considerou “absolutamente político, sem qualquer outra conotação”.

Meses depois, relembra Frota, “vêm à tona da conjuntura interna as intrincadas sucessões estaduais; no estado do Pará apresentam-se candidatos a governador Passarinho e Alacid. Falava-se com certa insistência na indicação, pelo Governo Federal, do senador Jarbas Passarinho para aquele cargo”.

Prossegue o então ministro do Exército: “Pessoas privilegiadas – frequentadoras assíduas do Planalto –, contudo, mostravam-se céticas quanto a esta escolha. Murmuravam não ser do interesse nem do agrado do general Gustavo Moraes Rego Reis, Chefe da Casa Militar, oficial ligado à sociedade paraense, o nome do senador, enquanto o do outro candidato – Alacid Nunes – contava com a simpatia dos assessores do presidente Geisel, em particular do general Golbery do Couto e Silva”.

O general faz confusão de datas, que não são as maiores que perpetra no seu livro. Nele, continua a afirmar que o jornalista Vladimir Herzog se suicidou nos porões do DOI-Codi, em São Paulo, em 1975, onde estava preso e foi torturado. Já nessa época só a versão oficial do simulacro de inquérito sustentava essa história. Mas a referência no seu volumoso depoimento à (anti)história, estimula a pensar na trajetória dos dois líderes que dominaram a política do Pará entre 1964 e 1982.

Quando ambos ascenderam ao poder (estadual e municipal), em junho de 1964, Passarinho já era um nome nacional. O próprio Frota informa ter conhecido o então capitão “nas penosas lutas para expurgar do Clube Militar os oficiais ditos nacionalistas, que o estavam transformando numa base de propaganda marxista, durante o biênio de 1950-52, quando o presidia o general Newton Estilac Leal”.

Passarinho já era considerado grande orador, ativo na política nacional, mesmo estando na ativa do Exército. Além de funções militares, fora superintendente da Petrobrás e membro da comissão de planejamento da SPVEA, antecessora da Sudam. Escrevia artigos sobre política internacional em A Província do Pará. Alguns o tinham por “progressista”, inclusive marxistas.

Alacid, com credenciais bem inferiores, acabaria por derrotá-lo na política paraense. O que desequilibrou a escaramuça particular dos dois foi o fato de que Alacid integrava o grupo liderado pelo marechal Cordeiro de Farias, um dos raros tenentes dos anos 1920 que conseguiu chegar finalmente ao poder, usando a UDN e depois se desfazendo dela.

A maioria desses chefes militares se associou a grandes grupos econômicos. Golbery do Couto e Silva, por exemplo, à multinacional de produtos químicos Dow Chemical. Já Cordeiro era o numero dois do nordestino João Santos, dono do segundo maior fabricante de cimento do Brasil. Alacid Nunes foi o diretor do grupo João Santos em Belém no interregno do primeiro mandato como governador e o primeiro mandato de deputado federal. Nesse período a sede da empresa foi destruída por um incêndio, que queimou seus arquivos. Justamente quando se discutia a legalidade de incentivos fiscais que lhe foram concedidos pelo mesmo Alacid.

O grupo de Cordeiro subiu ao poder com o marechal Castro Branco, o primeiro do ciclo de presidentes militares do regime iniciado em 1964. Foi para o ostracismo com a ascensão do marechal Costa e Silva. Mas não Passarinho, que, pelo contrário, foi chamado ao novo ministério. Os “castelistas” passaram a tratá-lo por traidor. O acerto de contas veio com a presidência do general Ernesto Geisel. Passarinho foi superado por Alacid graças à interferência de Brasília (que, mudando outra vez de rumo, não foi suficiente para dar a vitória aos “jarbistas” na eleição de 1982).

O fim de ambos foi antecipado pelas alianças que precisaram estabelecer com o antigo desafeto. Primeiro, Jader Barbalho liquidou Alacid. Depois, Passarinho. E ainda continuou a ter boas relações com ambos. Um novo coronel se estabelecia no poder. Mais competente, nas artimanhas da política, do que os anteriores.