sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Capa da edição desta semana de O Estado do Tapajós

A grandeza do voto no plebiscito do Pará


Lucio Flavio Pinto
Articulista de O Estado do Tapajós

No domingo, 11, os paraenses serão protagonistas de um ato inédito no Brasil. Pela primeira vez na história nacional uma unidade federativa decidirá pelo voto a sua configuração territorial. Até agora, a criação ou extinção de Estados foi ato exclusivo do poder central, imposto de cima para baixo; ou produto de uma transação entre as partes.

A constituição de 1988 abriu a possibilidade de essa decisão ser adotada através de plebiscito. Um ano depois da vigência da nova Carta Magna, em 1989, o Estado do Tocantins, concebido durante os trabalhos da assembleia constituinte, foi implantado sem a necessidade dessa consulta. Goiás não se opôs ao desmembramento de todo o norte do seu território.

Pelo contrário: durante os oito anos anteriores integrou uma comissão bipartite que preparou o surgimento do novo Estado. Tocantins nasceu sob o clima do entendimento. Como prêmio, Goiás teve suas dívidas perdoadas e o novo Estado contou com recursos federais para se estruturar.

Como o Pará atual não aceitou o fracionamento, a consulta plebiscitária se tornou necessária, através de projeto de lei do Congresso, aprovado através de acordo de sete lideranças partidárias, sem ir a votação em plenário.

Apesar da originalidade da situação, até alguns dias atrás a opinião pública nacional ignorou o fato. Parecia considerá-lo um acontecimento irrelevante, restrito a um Estado distante e secundário na estrutura do poder. Só começou a se aperceber da relevância da questão agora, às vésperas da votação – o que dá uma medida mais real do significado da Amazônia para o Brasil, descontada a propaganda e a fantasia.

Deve-se ressaltar que a maioria dos paraenses também permanece quase tão jejuna nessa pauta quanto um paulista ou um pernambucano. E que pauta: cheia de complexidades e sutilezas. Mas reduzida a um tiroteio verbal – personalizado e distorcido – na campanha eleitoral.

Os 4,8 milhões de eleitores habilitados a participar do plebiscito não vão escolher um líder local para algum cargo ou decidir sobre uma anomalia particular. A decisão que tomarem mudará a configuração territorial brasileira e provocará efeitos profundos sobre todo país.
A responsabilidade é grave e única, de um tamanho cuja grandeza o eleitor médio não tem a menor idéia. A campanha eleitoral em quase nada o ajudou nessa tarefa, dispersa entr5e ataques e defesas passionais, como em quase toda eleição.

Hoje, o Pará é o 2º em território do Brasil (com mais de 15% de toda sua extensão) e o 9º em população. Se a maioria dos eleitores concordar em dividi-lo para o surgimento de dois novos Estados, o Pará remanescente passará a ser apenas o 14º em tamanho e o 12º em população.

Sua nova configuração poderia situá-lo no rabo da fila da federação brasileira por quase todos os critérios. Já não seria uma fronteira com grande potencial de crescimento: teria que aplicar seu engenho e arte para resolver problemas estruturais, dentre eles um território que perdeu grande parte da floresta amazônica que possuía.

O novo Estado do Tapajós, a oeste, se tornaria o 3º em território do Brasil (abaixo apenas do Amazonas e Mato Grosso) e o 24º em população. Passaria a ser a personificação mais próxima da idealização da fronteira amazônica. Mas ao lado de grandes extensões de floresta nativa há elementos de intensa perturbação desse ideal: enormes minas em expansão, estradas que abrem veias de destruição.

No meio da mata, grilagem de terras, conflitos rurais, desmatamentos em incontida expansão. Quase todos os problemas do Pará atual com menos instrumentos de resolução. Versão piorada do original, em parte porque a dependência da capital distante induziu, pelo isolamento e o abandono, esse despreparo.

O possível Estado de Carajás, ao sul, nasceria com o 9º maior território e a 22ª população. Dentro da Amazônia, pode ser comparado a Rondônia, a mais bem sucedida das unidades federativas que se originaram dos antigos territórios federais (os outros são Roraima e Amapá).

O paralelo não é destituído de significação. Estado típico de imigração, Rondônia sofreu tal desmatamento que a principal meta das suas lideranças é retirá-lo da Amazônia e transferi-lo para o Centro-Oeste. Assim ampliariam (de 20% para até 80%) a área de imóveis rurais passível de novas derrubadas de floresta.

Rondônia se parece cada vez mais ao sertão, de onde veio grande parte dos seus atuais habitantes. Carajás também. Seus recentes moradores sentem-se mais identificados com a paisagem semelhante à dos seus locais de origem, mas a Amazônia só tem a lamentar – e a perder.

Os defensores do atual modelo de ocupação da região, que leva a esses efeitos tão danosos, são os mesmos que lideram as três frentes. Fique tudo como está ou mude a divisão administrativa do espaço geográfico, não será para melhor.

Mas não é só o conteúdo amazônico dessa vasta região, que representa dois terços do território nacional, o que está em causa no plebiscito. É a própria composição da unidade (ou da identidade) nacional, um desafio ainda à espera de uma resposta melhor do que a dada até agora.

De um lado, os que tentaram amesquinhar a questão, sugerindo restringir a consulta à população das regiões que pretendem se emancipar (o que seria um jogo de cartas marcadas, com resultado certo: a favor).

De outro, os que interpretaram conforme seus interesses a regra constitucional, segundo a qual a “população diretamente interessada” na questão é toda a população brasileira e não apenas os 4,8 milhões de eleitores paraenses.

Argumentaram que o custo da instalação dos dois novos Estados terá que ser rateado entre todos e que os efeitos políticos prejudicarão os demais, sobretudo os Estados mais fortes (cujo peso no parlamento sofrerá nova redução quando, no lugar dos 17 deputados federais e 3 senadores paraenses, se apresentarem 30 deputados e 9 senadores dos três Estados derivados do Pará).

Numa decisão inspirada para os padrões das suas últimas deliberações, o Supremo Tribunal Federal rejeitou essa tese, formulada pelo jurista Dalmo de Abreu Dallari, ligado à esquerda paulista. A “população diretamente interessada” é apenas a do Pará.

Além de consagrar uma lógica quase tautológica, o STF fortaleceu – como raras vezes isso ocorre – a debilitada federação brasileira de verdade, ao invés de passar mais verniz na República Unitária que somos, caracterizada pela hipertrofia de poder em Brasília.

Como seria bom se o eleitor se sentasse diante da urna informatizada com a consciência de estar contribuindo para aumentar a democratização do Brasil. Será utopia pretender que o eleitor seja, antes de tudo, um cidadão ativo? Se ele quiser chegar a essa condição, o dia seguinte ao da votação será tão ou mais importante. “Basta” (o que, sabemos, é um enorme desafio) que assuma a autoria da história.

Plebiscito - Debate amanhã na Record

O Pará além do plebiscito

Paulo Bemerguy
Jornalista santareno, editor do site Espaço Aberto
Então é assim.
A campanha do plebiscito tem virado o mundo da política paraense de ponta-cabeça.
De cabeça pra baixo.
Eleição especialíssima, em que os sentimentos de apego ao torrão natal talvez falem mais alto do que elementos objetivos para justificar posições contrárias ou favoráveis à criação dos Estados do Tapajós e de Carajás, o plebiscito de 11 de dezembro mistura de tal forma os discursos que, às vezes, não se sabe ao certo quem é quem.
No debate de ontem, por exemplo, isso ficou bem claro nos enfrentamentos verbais travados, sobretudo, entre os representantes da Frente Contra e a Favor de Carajás, respectivamente o deputado federal Zenaldo Coutinho (PSDB) e o deputado estadual João Salame (PPS).
Salame, vice-líder do governo, sentou a pua, meteu o pau, baixou o malho no governo do qual é aliado na Assembleia Legislativa e que tem por obrigação, é claro, defender.
Sim, sim, lá pelas tantas, inclusive quando provocado diretamente a dizer o que pensava da figura pública do governador Simão Jatene - que também passou a levar cipoadas da Frente do "Sim" nos últimos dias -, Salame foi muito claro e incisivo: "Sou aliado, e não puxa-saco do governador".
Claro, assim é que deve ser em qualquer circunstância da vida, porque a bajulação, vamos e convenhamos, quase sempre é uma excrescência.
Mas convém não esquecer que a especialidade, a singularidade de uma escolha como essa, que convoca o Pará a decidir se quer ou não a criação de dois novos Estados, não se esgota no ato de cravar 55 ou 77 no próximo dia 11 de dezembro.
Não.
As cisões, as fissuras, os ressentimentos, as mágoas, o clima de divisão vai continuar, ainda que o "Não" vença.
E quem deve administrar isso não é apenas o governador do Estado - o atual e os futuros, sejam quem forem.
As lideranças políticas também têm responsabilidade nessa, digamos, assim, reconstrução do Estado.
Um Estado que, não resta dúvida, em várias regiões precisa mesmo é ser construído - precisa sair do zero, precisa superar enormes adversidade, precisa ser edificado, precisa começar do começo, do princípio.
Literalmente.
Em sua edição de hoje, por exemplo, O LIBERAL mostra a relação médico-habitante no país inteiro.
Matéria do repórter Thiago Villarins revela que o Estado ostenta, nesse particular, índices africanos, índices dos países mais pobres da África. Os médicos estão concentrados em Belém.
O estudo intitulado "Demografia Médica no Brasil: dados gerais e descrições de desigualdades", do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), aponta que Pará tem a segunda pior marca do País na relação médico por habitante: 0,83 médicos a cada grupo de mil habitantes. Índice pior só no Maranhão - 0,68 médicos a cada mil pessoas.
Esses números têm consequência na vida cotidiana das pessoas.
Há pessoas morrendo em situações em que poderiam ser salvas.
Há pessoas padecendo de dores que poderiam ser minoradas, se houvesse atendimento médico mínimo.
Há pessoas abandonadas à própria sorte nos mais recônditos, nos mais remotos rincões de um Estado continental como este, à espera da presença do Poder Público - mesmo que seja uma presença aquém, muito aquém do que seria de se esperar.
Porque é certo que em muitas regiões do Pará nem se pode dizer que o Estado seja inoperante.
Nem se pode dizer que a presença do Poder Público seja opaca, ineficiente, ineficaz, imperceptível.
Em verdade, não há Estado nessas regiões.
Não há Poder Público nessas regiões.
Não há sinal de governo - nenhum, nada, zero vezes zero - nesses locais.
Políticos que trançam por aí, em época de eleição, já devem ter tomado contato com pessoas humildes, simples, que sobrevivem em locais quase incacessíveis e, portanto, abandonados.
Pois nesses locais, quando os moradores se referem a um espaço territorial que não seja aquele chão onde eles pisam, costumam dizer assim, todas as vezes em que precisam mencionar outro lugar, longe dali:
- Lá no Brasil...
Isso quer dizer o seguinte:
- Lá no Brasil a gente tem médico, aqui não.
- Lá no Brasil a gente tem educação, aqui não.
- Lá no Brasil a gente tem energia, aqui não.
- Lá no Brasil a gente tem segurança, aqui não.
É assim.
O Brasil é uma miragem.
Se o Brasil, imaginem só, já é uma miragem, o Pará também.
O Pará também é uma miragem.
Um lugar distante.
Fictício.
Inacessível.
Quem sabe, seja até um lugar ideal.
É longe dali.
É um lugar que só existe na imaginação daquela gente.
Pessoas humildes, esquecidas por esse Pará continental, perdem a própria referência territorial, perdem a noção de espaço e, certamente, perdem a noção do tempo, tão esquecidas, tão abandonadas, tão desprezadas elas se encontram há décadas, para não dizer há séculos.
É preciso que todos se deem conta disso.
Porque não basta reconhecer que o Pará tem problemas.
Isso não é muito suficiente para conferir uma certa autenticidade a discursos que se mostram cautelosos, para não exibir seus autores como cidadãos insensíveis à realidade.
Por que esse tipo de discurso não é suficiente?
Porque se qualquer pessoa, nesta campanha, viesse a dizer que o Pará não tem problemas, seria confundida com um piadista da pior espécie. E desconsiderada por causa disso.
Por isso, repita-se, não basta reconhecer que o Pará tem problemas.
É preciso reconhecer que, secularmente, nada se faz - nada, absolutamente nada - para atacá-los, para superá-los, para minimizar os seus efeitos.
Nada ou muito pouco se tem feito para que o cara que está no igapó, no interior do interior da comunidade mais remotada do Tapajós e de Carajás, diga assim.
- Aqui no Pará a gente tem saúde.
- Aqui no Pará a gente tem educação.
- Aqui no Pará a gente tem energia.
- Aqui no Pará tem governo.
Mais do que dizer "é claro que o Pará tem problemas, não podemos esconder isso", é preciso que ouvíssemos compromissos claros de que os problemas serão resolvidos.
De que os abandonados serão reinseridos no mundo.
Pelo Sim, pelo Não, é preciso que todos reflitam sobre isso.
Os que defendem e os que não defendem a criação dos Estados de Carajás e do Tapajós.