quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Aula magna de direito: o STF e o “mensalão”


Lúcio Flávio Pinto

Escrevi este artigo tão logo chegou ao fim o primeiro dia (2 de agosto) de sessão do Supremo Tribunal Federal para apreciar a Ação Penal 470, a designação técnica para o “mensalão”. Para os fins deste artigo, não precisarei levar em consideração o desdobramento do processo, que pode ser longo e acidentado.

Depois de horas à frente da tela do computador, saio com uma convicção: todos os alunos de direito que frequentam as escolas superiores do Brasil deviam assistir à gravação. Foi uma magnífica aula magna. É uma lição intrínseca de direito.

Mesmo sem ter o mesmo rendimento dos já iniciados nos segredos e especificidades do direito, qualquer cidadão sairia enriquecido da sessão. É uma pena que o ex-presidente Lula tenha insistido em comunicar aos jornalistas, através de sua assessoria, que preferiu sintonizar seu aparelho nas olimpíadas de Londres e em uma novela da TV Globo. A sessão devia ser programa obrigatório para todos os homens públicos brasileiros.

Mais uma vez, confiante no seu carisma e na sua individualidade prodigiosa em um universo de sete bilhões de almas humanas sem o mesmo brilho, o ex-presidente dá péssimo exemplo. Se sua consciência não lhe obrigasse a acompanhar o julgamento, sua condição especial de cidadania lhe impunha essa tarefa. Ele também aprenderia, ainda que precisasse, antes, aprender a aprender.
Mas tudo bem. Na parte propriamente técnica da sessão inaugural do STF do processo do “mensalão”, o grande personagem foi o ministro Ricardo Lewandowski. Posso falar dele com algum conhecimento de causa. Fomos colegas e amigos no curso de graduação da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, entre 1969 e 1971.

Ricardo era um aluno aplicado e correto. Mas parecia um tanto deslocado no curso. A sociologia era, por definição, uma ciência posta sob suspeita pelo regime militar. Com o AI-5, dos últimos dias do ano libertário de 1968, tornou-se definitivamente subversiva, criminosa mesmo.

Mas nós teimávamos em desafiar o interdito estatal e as ameaças do aparelho repressor oficial. Teimávamos em pensar, questionar, criticar e negar. Vários de nós pagariam caro por encarar esse desafio.

Ricardo, de uma família de imigrantes europeus, filho de um industrial, dado a hábitos aristocráticos, era um conservador no meio da turba. Mas, ao menos comigo, o diálogo estava garantido: ambos gostávamos de estudar, nos deixávamos levar pelo exercício do raciocínio e prezávamos a troca de ideias de matriz tipicamente acadêmica. Era evidente que Ricardo jamais seria um sociólogo, o que viria a se confirmar. Ele se desviou para sua vocação: o direito.

Passei muito tempo desligado dele. Vim a ter notícia a seu respeito quando foi promovido ao desembargo no Tribunal de Justiça de São Paulo. E só voltei a manter contato ao lhe enviar uma mensagem de parabéns quando chegou ao STF. Senti-me honrado na condição de seu colega de escola. Ele chegava mais alto do que todos nós.

Falava-se que essa ascensão se devia à sua intimidade principalmente com a esposa de Lula, muito antes de ela se tornar primeira dama. Passava direto para a cozinha e lá conversava com o casal, ao qual devia dar assistência. Sem dúvida essa ligação pesou para a sua indicação ao STF, talvez até tenha sido decisiva. Mas não lhe faltariam méritos para ir além da cúpula do judiciário paulista, se pudesse ter acesso a outro tipo de seleção.

Pensava nisso e em muito mais enquanto ouvia a leitura do seu voto sobre uma questão de ordem apresentada pelo advogado de um dos réus, o dono do Banco Rural, a principal fonte de financiamento identificada do “mensalão”, o ex-ministro da justiça e factótum nos bastidores políticos, judiciais e tudo mais, Márcio Tomaz Bastos (uma versão atualizada de Saulo Ramos, bem menos culto do que o amigo de Sarney, mas com resultados melhores).

O voto de Lewandowski era longo, com surpreendentes 53 páginas, minucioso, lógico, formal, bem fundamentado. Deixando de lado suspeitas sem comprovação sobre um possível acerto prévio entre o ministro e gente do PT no poder, a quem ele deveu sua indicação para o cargo mais alto da carreira jurídica no Brasil, impossível não ter do seu parecer uma impressão muito boa. Mas apenas se dele fizéssemos uma análise intrínseca, limitada à sua coerência interna. Quando abordado com senso crítico, num contexto mais amplo, o que parecia sólido se dissolvia no ar, virava farelo.

A questão de ordem, por extemporânea, devia ser rejeitada de imediato. Ela era, na verdade, uma preliminar sobre a violação de garantia constitucional e de tutela em tratado internacional das Américas, celebrado em São José da Costa Rica, sobre o duplo grau de jurisdição como garantia inalienável de qualquer pessoa e a primazia do juiz natural no devido processo legal.

Como tal, a questão estava preclusa. Em pelo menos duas ocasiões, o colegiado do STF, à unanimidade, não acolhera os argumentos, com os quais as defesas dos réus queriam o desmembramento do processo, unificado a partir da denúncia da Procuradoria Geral da República por conexão de causas ou continência. Não se tratando de questão nova, a iniciativa do ex-ministro de Lula não podia ser questão de ordem. Era preliminar, já julgada e vencida.

Toda a estrutura analítica levantada por Lewandowski no apoio à pretensão do réu desmoronou quando a ministra Lúcia Weber apresentou o seu voto, com elegância, civilidade e tal tranquilidade que, a princípio, parecia que ia acompanhar o revisor divergente. Começando por elogiá-lo, ela procurou preservá-lo e garantir a continuidade de suas relações com seus pares de tribunal.

O ministro fora atacado pessoalmente, como desleal, pelo seu colega (e relator) Joaquim Barbosa, revoltado pela reapresentação de matéria vencida, que talvez buscasse protelar ainda mais o andamento do processo para favorecer a prescrição dos crimes. A investida deselegante de Barbosa foi retrucada com ênfase ainda maior por Lewandowski. Sinal positivo para o futuro: ambos ficaram a partir daí isolados na corte.

Através das sendas abertas pela ministra, vieram seus colega, com a missão de não deixar pedra sobre pedra na construção “lewandowskiana”. Tangenciando a questão prejudicial da preclusão do direito, os ministros seguintes examinaram o mérito do voto do revisor. Ao final dessa taxonomia analítica, os fundamentos da manifestação foram dissipados e atirados ao vento, que os dispersou pela fugidia memória.

Mesmo que limitada, a dupla jurisdição num tribunal finalista, como o STF (cujos atos não podem mais ser revistos, se não por ele mesmo, quando cabível) pode ser exercida através de embargos infringentes, caso a decisão – tomada contra o réu – não for unânime. Nesse caso, é admitido até o reexame das provas e o mérito da questão, como se fosse procedido um novo julgamento, no qual não podem funcionar nem o relator nem o revisor do momento anterior. Tem que ser designado um novo ministro para o feito.

Prevalecendo a conexão em função do foro privilegiado, a atração dos demais réus para serem julgados pelo STF serve à justiça porque o colegiado pode examinar em conjunto todas as provas e trafegar entre o direito penal e o cível, o que seria impossível na hipótese de devolução dos 35 processos ao juiz monocrático de origem.

Isso já aconteceu durante o inquérito, que forneceu os elementos de prova para a apreciação dos ministros do STF. Desagregar os autos agora seria uma insensatez, que só se justificaria se o inverso constituísse realmente uma iniciativa ilegal, antijurídica.

A posição assumida por Lewandovski, se antes podia ser defensável, se tornou melancólica, fantasmagórica, um esqueleto a merecer a sepultura num armário indevassável. O ministro se tornara anacrônico, antediluviano.

Todas as razões técnicas apresentadas pelos juízes do STF podiam ser deixadas de lado quando o ministro Cezar Peluso começou a declarar o seu voto. Com um coloquialismo inacessível à maioria dos seus sisudos pares (mas sem o tom teatral de Marco Aurélio de Mello, que às vezes derrapa para o padrão de ópera bufa), Peluso declarou que, na véspera, ao chegar mais cedo à sua residência, assistiu ao noticiário da televisão.

Alguém, em determinado programa, observou, com calma e bonomia, que se um novo julgador recebesse os autos do “mensalão” e pudesse ler as 50 mil páginas do processo como um locutor de turfe (que fala com mais velocidade do que o cavalo galopa), levaria um ano para tomar pleno conhecimento das peças contidas nos autos. Ao se sentir em condições de instruir o processo, já a maioria dos crimes teria prescrito. Se não todos eles. A punibilidade dos réus estaria extinta.

A tese do juiz natural, que seria o juiz isolado nos casos dos réus sem privilégio de foro (concedido aos servidores públicos e políticos arrolados na ação), e que são três deputados federais dentre os 38 réus, era uma porta de emergência contra a realização da justiça. Mesmo que fosse uma tese aplicável ao caso, dar-lhe a relevância que lhe concedeu Lewandowski significaria inverter a hierarquia do processo judicial.

Significaria elevar a primazia o que é mera formalidade e a acessório o que é substancial, subvertendo as ponderações. Muitos dos que querem se livrar de suas responsabilidades em casos judiciais de maior gravidade, como esse do mal definido “mensalão”, recorrem a preciosismos formais para livrar-se do encargo ou mesmo para ajudar réus de maior envergadura. Por esse desvio, Lewandowski conduziria maus brasileiros ao promontório da impunidade, que tanto faz mal à justiça e ao Brasil.

Felizmente esse objetivo não foi alcançado, numa sessão que merece ser transformada em aula obrigatória para todos os brasileiros que pretendem seguir a carreira jurídica. E se tornar cidadãos plenos em um Brasil melhor do que o do “mensalão”.

Não foi uma sessão linear nem manteve sempre um nível elevado, Mas ofereceu a quem a assistiu uma esperança: de que o julgamento seguirá um padrão técnico, através do qual chegará à verdade e fará justiça. Ou então a confiança nas instituições, incapazes de sustentar tecnicamente suas decisões e se expor à crítica pública, estará definitivamente abalada. E a democracia se tornará ociosa – se não perigosamente inútil.

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