segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O bispo americano que não era da CIA


Lúcio Flávio Pinto
Artigo publicado na edição desta semana de O Estado do Tapajós

A internet passou a ser desaguadouro seguro para todo e qualquer tipo de história que se queira contar. Dentre elas, narrativas sobre a penetração estrangeira na Amazônia. Apesar de contraditadas até a desmoralização, elas continuam a circular e a atrair propagadores.

Como o livro didático adotado nas escolas americanas que excluem a Amazônia do mapa do Brasil. Ou um decalque convocando os sobrinhos de Tio Sam a cumprir sua cota diária de brasileiro morto. Ou ainda o testemunho de alguém que acabou de chegar de Roraima horrorizado pelo que viu: num determinado trecho da rodovia Manaus-Boa Vista só se consegue passar falando inglês. Quem não é fluente na língua de Shakespeare é detido.

Já se falou também dos submarinos que demandavam o porto de Monte Dourado, no reino de Daniel Ludwig, no Jari, para transportar clandestinamente toras de madeira, dentro das quais haveria ouro. Ou os fornos para queimar cassiterita instalados na área dos índios Yanomami, na divisa do Brasil com a Venezuela.

O americano James Michael Ryan (seu nome de batismo) fez parte dessas lendas e mistérios da sempre atenta cobiça internacional sobre a Amazônia na pele de dom Thiago Ryan. De vez em quando alguém, geralmente jornalista, aparecia com a pergunta sibilina: ele não é agente da CIA postado no coração da Amazônia? Larry Rohter, que veio atrás do zum-zum-zum, o desfez em reportagem para o New York Times. Mas era um americano escrevendo para um grande jornal americano, ambos suspeitos à vista da geopolítica corrente na Amazônia.

Cristovam Sena acaba de dar a contribuição local à verdade com Dom Tiago, o missionário do Tapajós, livro que organizou e publicou pelo Instituto Cultural Boanerges Sena, de Santarém (174 páginas, 2012) para comemorar o centenário de nascimento do bispo (declarado emérito pós-morte), apropriadamente definido como “o missionário”, o que ele nunca deixou de ser. O carregado sotaque, que o acompanhou até o último dia, não escondia a origem do personagem e sua dificuldade para falar mais livremente o português. Mas só isso o mantinha estrangeiro.

Thiago viveu durante quase 60 anos no Baixo Amazonas, indo de padre a bispo, a partir de julho de 1943, quando chegou à região, com mais três franciscanos. Ele desembarcou do mesmo navio que trazia, como “soldados da borracha”, 500 cearenses, mais conhecidos por arigós, a maior parte de São Francisco do Canindé (de onde também veio – bem antes – meu avô, o brabo Raimundo Pinto).

Era uma situação de impacto: em péssimas condições, os homens iriam trabalhar no fornecimento de matéria prima vital para a campanha das nações aliadas, lideradas pelos Estados Unidos, contra as potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Muitos morreriam nos seringais distantes, mas já ali o drama era tão visível que o missionário franciscano tentou se comunicar com eles, arranhando um português precário e complementando-o com o latim. A solidariedade foi mais marcante do que a comunicabilidade. Deixou uma semente definitiva na alma e no coração do padre iniciante, aos 21 anos de idade.

Aposentado, Thiago continuou na região, como simples cidadão, num lugar ermo, sacrificante, quando renunciou à hierarquia eclesiástica, depois de 27 anos como bispo de Santarém, . Era um caboclo alvo, exageradamente alto, de fala enrolada. Mas definitivamente amazônico.

Um homem cordial, tolerante e diplomático. Contornou ou enfrentou momentos muito difíceis na sua prelazia (depois diocese) sem perder a calma e bater a porta. Aproveitou o que pôde da qualidade alheia, sem abrir mão dos seus princípios éticos, morais e religiosos. Teve como seu secretário durante 20 anos um homem que era comunista velado, mas inteligente, trabalhador, íntegro e leal: o historiador autodidata João Santos. Um Dom Camilo e um Peppone tropicais, à revelia das pressões e circunstâncias externas.

Em 2002, indo se tratar de um câncer fatal na sua terra, em Chicago, sabendo que a morte já o espreitava, fez um pedido final: queria ser enterrado em Santarém. Seu túmulo está sob as pedras da catedral de Nossa Senhora da Conceição, a padroeira de Santarém. Só quem não conhece a sua história pode imaginá-lo, à distância, como um espião da CIA infiltrado ocasionalmente na remota Amazônia. É apenas um dos delírios de uma geopolítica febril.

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